Resenha da Crônica "345" de Artur Azevedo
345, de Artur Azevedo. Tendo escrito milhares de artigos sobre eventos artísticos e encenado mais de cem peças no Brasil e em Portugal, Azevedo foi um dos maiores defensores da criação do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, cuja inauguração ocorreu meses depois de sua morte (Wikipedia)
"345" é uma obra cômica do escritor brasileiro Artur Azevedo, lançada em 1896. Nesta resenha, exploraremos os principais tópicos e características deste livro que é um clássico da literatura humorística brasileira.
Contexto Histórico:
Artur Azevedo viveu no período da transição do século XIX para o século XX, quando o Brasil passava por importantes transformações sociais e culturais.
A urbanização, o crescimento das cidades e a diversificação da cultura eram aspectos marcantes da época.
Os Principais Tópicos:
Sátira Social:
"345" é uma sátira social que critica aspectos da sociedade carioca do final do século XIX.
O título faz referência ao número de uma casa fictícia, mas representa, de forma simbólica, a visão humorística do autor sobre a sociedade da época.
Tipos Caricatos:
A obra apresenta uma série de personagens caricatos, cada um representando um estereótipo social.
Os personagens são usados de forma satírica para destacar aspectos como hipocrisia, vaidade, ambição e fofoca.
Diálogos Irônicos:
O livro é repleto de diálogos irônicos e situações absurdas que provocam o riso do leitor.
Artur Azevedo utiliza o humor para comentar sobre questões cotidianas e comportamentais.
Crítica à Moralidade da Época:
O autor critica a moralidade da sociedade carioca, frequentemente abordando temas como casamento, adultério e convenções sociais.
Essa crítica é feita com leveza e ironia, caracterizando a abordagem humorística de Azevedo.
Estilo Literário:
Artur Azevedo é conhecido por seu estilo literário leve e humorístico.
Ele faz uso de trocadilhos, jogos de palavras e situações inusitadas para criar humor em suas obras.
Conclusão:
"345" de Artur Azevedo é uma obra que oferece uma visão humorística e crítica da sociedade carioca do final do século XIX. Com personagens caricatos, diálogos irônicos e críticas à moralidade da época, o autor utiliza o humor como uma ferramenta para comentar sobre questões sociais e culturais. A obra é um exemplo notável da habilidade de Azevedo em criar comédias literárias que permanecem relevantes e divertidas até os dias de hoje. É uma leitura recomendada para quem aprecia a sátira social e o humor inteligente na literatura brasileira.
345 - Artur Azevedo
- És o rei dos caiporas, e, além disso, não tens a menor parcela de bom senso! Não fosse eu
tua mulher, e não sei o que seria de ti, porque decididamente não te sabes governar!
- Exageras, nhanhã!
- Não! não sabes! Tens deixado estupidamente um rol de vezes passar a fortuna perto de ti,
sem a agarrar pelos cabelos! Dizem que ela é cega: cego és tu!
- Já vês que a culpa não é minha...
- Quando houve o Encilhamento, só tu não te arranjaste!
- Mas também não me desarranjei...
- Para seres promovido a 1o oficial da tua Repartição, foi preciso que eu saísse dos meus
cuidados e procurasse o ministro.
- Fizeste mal.
- Se o não fizesse, não passarias da cepa torta!
- Não quero obscurecer o mérito da tua diligência, mas olha que estás enganada, nhanhã.
- Deveras?
- Redondamente enganada. A nomeação era minha. Quando fui agradecê-la ao ministro, este
disse-me: "Não era preciso que sua senhora se incomodasse: o decreto estava lavrado."
- Pois sim! isso disse ele... E quando o decreto estivesse, efetivamente, lavrado? Á última hora
seriam capazes de substitui-lo por outro! Pois se és tão caipora!
- Perdoa, nhanhã, mas não sou tão caipora assim... Pelo menos tive uma grande felicidade na
vida!
- Qual foi, não me dirás?
- A de ter casado contigo...
Nhanhã mordeu os lábios, porque não achou o que responder, e naquele dia as suas
impertinências habituais não foram mais longe.
* * *
O pobre Reginaldo - assim se chamava o marido - habituara-se de muito àquelas recriminações
insensatas, e era um quase fenômeno de resignação e paciência.
Ela bem sabia que a coisa seria outra, se realmente a fortuna se deixasse agarrar pelos
cabelos: o que nhanhã não lhe perdoava era a sua pobreza, - não era o seu caiporismo. Ela não
podia ter em casa do marido o mesmo luxo que tinha em casa do pai; não podia rivalizar com
alguma amiga em ostentação: era isto, só isto que a afligia, ou antes, que os afligia a ambos,
marido e mulher.
* * *
Reginaldo tinha aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava.
Entretanto, uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para recolher-se à casa, e no Largo do
Machado, onde se apeou, pois morava naquelas imediações, foi perseguido por um garoto que
à viva força lhe queria impingir um bilhete de loteria, - uma grande loteria de cem contos de réis,
cuja extração estava anunciada para o dia seguinte.
Reginaldo resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao garoto, que o acompanhava
insistindo; mas de repente lhe acudiu a idéia de que aquele maltrapilho poderia ser a fortuna
disfarçada. Era preciso agarrá-la pelos cabelos! Comprou o bilhete, e foi para casa, onde o
esperavam os tristes feijões quotidianos.
* * *
Ele bem sabia que, se dissesse a nhanhã que havia feito essa despesa extra-orçamentária, não
teria a sua aprovação; mas que querem, - o pobre rapaz era um desses maridos submissos, que
não ficam em paz com a consciência quando não contam por miúdo às caras-metades tudo
quanto lhes sucede.
Ao saber da compra do bilhete, nhanhã pôs as mãos na cabeça:
- Quando eu digo que tu não tens a menor parcela de bom senso...! Aí está! Dez mil-réis
deitados fora, e tanta coisa falta nesta casa!...
E seguiu-se, durante meia hora, a relação dos objetos que poderiam ser comprados com
aqueles dez mil-réis perdidos.
Depois disso, nhanhã pediu para ver o bilhete.
Reginaldo, sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e entregou-lho.
- Número 345! exclamou ela. Um número tão baixo numa loteria de cinqüenta mil números! Isto
é o que se chama vontade de gastar dinheiro à toa! Algum dia viste, nessas grandes loterias, ser
premiado um número de três algarismos?
Reginaldo confessou que nem sequer olhara para o número. Como o garoto se lhe afigurou a
fortuna disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe fora oferecido, entendendo que não devia
argumentar com a fortuna.
- 345! Pois isto é lá número que se compre!
- Agora não há remédio.
- Como não há remédio? Põe o chapéu e volta imediatamente ao Largo do Machado: o garoto
ainda lá deve estar. Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o dinheiro.
- Perdoa, nhanhã, mas isso não faço eu: comprei! Nem o garoto desfazia a compra!
- Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos, quatro algarismos! Se tiver
cinco, melhor!
- Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhetes de loteria não se trocam...
- Faze o que eu disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas e eu tenho muita sorte!
Reginaldo não disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de casa, foi ao Largo do Machado, e voltou
com outro bilhete.
Desta vez o número tinha cinco algarismos: 38788; nhanhã devia ficar satisfeita.
Não ficou:
- Devias escolher um número mais variado: o 8 fica aqui três vezes.. - Mas, enfim, 38788
sempre inspira mais confiança que 345...
* * *
Pois, senhores, no dia seguinte o n.0 38788 saiu branco, e o n.0 345 foi premiado com a sorte
grande.
* * *
Imagine-se o desespero de nhanhã:
- Então, eu não digo que és o rei dos caiporas?
- Perdoa, nhanhã, mas desta vez não fui o rei: tu é que foste a rainha...
- Cala-te! Se não fosses um songamonga, não me terias feito a vontade! Ter-me-ias roncado
grosso!
- Ora essa!
- Um marido não se deve deixar dominar assim pela mulher!
- Olha que eu pego na palavra...
- Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo!...
- Absurdo aconselhado por ti...
- Mas tu já não estás em idade de receber conselhos!
- Bom; de hoje em diante baterei com o pé e roncarei grosso todas as vezes que me
contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!...
A boas horas vêm esses protestos de energia!
E exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o teto: "Cem contos de réis"!,
nhanhã deixou-se cair sentada numa cadeira, e desatou a chorar.
* * *
Mal que a viu naquele estado aflitivo, Reginaldo correu para junto dela, e disse-lhe com muito
carinho:
- Sossega. Eu fiz uma coisa... mas vê lá! não ralhes comigo...
- Que foi?
- Não troquei o bilhete!
Não trocaste o bilhete? gritou nhanhã erguendo-se de um salto, com os olhos muito abertos.
- Não! pois eu fazia lá essa asneira! Seria deixar fugir a fortuna, depois de a ter agarrado pelos
cabelos!
- Compraste então o outro bilhete?
- Comprei...
- Nesse caso... estamos ricos?
- Temos cem contos.
- Ora, graças que um dia fizeste alguma coisa com jeito!
- Qual! eu continuo a ser o rei dos caiporas.
- Não digas isso!
- Digo, porque se o não fosse, o número 38788 teria apanhado a sorte imediata...
(Correio da Manhã, 16 de outubro de 1904)
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